Por João Sayad
A política cultural não pode pretender incentivar o bom gosto definido pela "elite branca" da academia. Ou por saudosistas da arte regional
"NÃO PRECISA de ficha no caixa. Podem pegar os refrigerantes ali na geladeira de vidro." O bar na esquina da Major Quedinho serve o melhor sanduíche de pernil em São Paulo. A fome era grande, mas eu não queria entrar: estava apinhado de gente, por causa da Virada Cultural. Imaginei fila no caixa, espera no balcão. Surpresa: fizemos o pedido a um garçom exausto e gozador. O sanduíche veio rápido, repetimos e pagamos ali mesmo, na rua.
Nas padarias e bares do Brasil, os garçons parecem animadores culturais. Têm uma palavra diferente para cada freguês, o serviço é rápido, diferenciado (pão com manteiga na chapa -prensado ou não?).
Na Starbucks (café), são filas imensas. Atrás do caixa, uma moça negra luta com o computador, pede ajuda à supervisora, que olha espantada para o teclado. Depois, você pega um café aguado, muito quente, queima a mão e vai pôr açúcar e pegar uma colherzinha de plástico num balcão melado de café e açúcar. Custa uma fortuna.
No McDonald's, os atendentes fizeram curso para atendimento rápido e delicado, mas é coisa forçada e você tem que ficar na fila. Depois, come sanduíche carregado de gordura trans e senta numa mesa pequena e incômoda. McDonald's e Starbucks valem fortunas na Bolsa.
Os brasileiros mais jovens preferem fast food às coxinhas, empadas, churrasquinhos e mistos-quentes das padarias sempre próximas. Aprenderam a gostar, desde os anos 90, quando o Brasil começou a se "modernizar". Foram seduzidos pelas instalações modernas, pela novidade e pelo que viam nos filmes e na televisão.
Culinária não é arte. Mas a mesma coisa acontece no mundo da arte. A indústria cultural -o filme de entretenimento, a novela da televisão, o "reality show"- ganha o espaço da música erudita, da música popular, do teatro de texto ou de criação coletiva, das congadas e do balé.
Gosto é gosto, e a política cultural não pode ter a pretensão de incentivar o bom gosto definido pela "elite branca" da academia ou dos museus. Ou pelos saudosistas do folclore e da arte regional. A política cultural deve apenas abrir espaço para todas as formas de arte que precisam de apoio -porque não dão lucro, porque não têm cacife para publicidade ou porque não conseguem furar a barreira da moda, o gosto da maioria.
Se fast food fosse uma forma de arte e a moda fosse o pão com manteiga, a política cultural deveria dar incentivo fiscal para o café aguado em copo de papel da Starbucks. Se não existisse legenda e o filme americano não fosse o gosto da maioria, a Lei Rouanet deveria financiar as legendas.
Há duas semanas, São Paulo passou a noite acordada na Virada Cultural promovida pela Prefeitura de São Paulo. Piano e muitos pianistas na praça Dom José Gaspar. Balé clássico e contemporâneo no vale do Anhangabaú. Música jovem, com luz estroboscópica no centro velho. Malabaristas no prédio da Light. E uma fila de dois quilômetros para entrar no Teatro Municipal.
No final de semana passado, o governo do Estado, com as prefeituras e o Sesc, fez uma virada em dez cidades do interior. Que ouviram a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), Beth Carvalho, o violonista Yamandu, o teatro Mágico, Arnaldo Antunes, o balé de São José. Foram 300 espetáculos. Teatros municipais ficaram cheios, as praças ficaram apinhadas de gente. Duzentas mil pessoas passaram a noite acordadas e continuaram na rua até as 18h de domingo. Tomaram posse da cidade e viram ou ouviram o que não costumam ver ou ouvir. Centenas de artistas viajaram de cá para lá e de lá para cá, exibindo-se para novas platéias. O centro foi para a periferia; a periferia, para o centro; a capital, para o interior; o erudito, para a rua; o popular, para o teatro municipal.
Fim de semana de arte, uma forma nova de ler o mundo, a vizinhança, as ansiedades e os desejos que nos movem durante a semana.
Fim de semana civilizado, onde todos se encontram na rua, sem medo, andando para lá e para cá, como nos quadros e fotos de cidades no início do século passado, quando havia poucos carros, as ruas pertenciam às pessoas e os crimes eram passionais. Civilizado pelo clima de confiança, não era necessário fazer fila no caixa.
Um prazer desconhecido para os cidadãos motorizados em carros de vidro fechado, modernos e apavorados. Uma oportunidade para centenas de artistas. Deu certo. No ano que vem, vamos fazer de novo.
JOÃO SAYAD, 61, doutor em economia pela Universidade Yale (EUA) e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, é secretário da Cultura do Estado de São Paulo. Foi secretário de Finanças e Desenvolvimento da prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy), secretário da Fazenda do Estado de São Paulo (governo Montoro) e ministro do Planejamento (governo Sarney). (Folha de S.Paulo)
terça-feira, 22 de maio de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário