terça-feira, 8 de novembro de 2011

Quando a cerveja é mais do que uma bebida

Por John Mariani | Da Bloomberg, na Bélgica

Atendente em bar de Bruxelas: cervejas são motivo de orgulho e dos poucos pontos de identidade entre flamengos, próximos à Holanda, e valões de língua francesa.

Charles De Gaulle tem uma frase famosa, em que se lamentava sobre as dificuldades pelas quais passava na França: "Como é possível governar um país que tem 246 variedades de queijos?". Pois ele poderia ter tido um colapso nervoso caso governasse a Bélgica, pequeno país ao norte da França que tem mais de 1 mil diferentes cervejas. Um livro sobre o assunto, "All Belgian Beers" (Todas as Cervejas Belgas), de Hilde Deweer tem 1.568 páginas e pesa mais de 1,5 kg.

Por mais que eu tenha tentado fazer um reconhecimento de terreno sobre a bebida favorita do país durante uma viagem a Antuérpia, Ghent e Bruxelas no mês passado, o resultado da tentativa foi apenas espanto diante da variedade e dos estilos de cervejas no país, cada uma com seu próprio copo personalizado.

Há cervejas âmbar, louras, marrom, ao estilo de champanhe, azedas e cervejas fortes, cervejas lambic e de frutas, lagers pálidas, stout, cervejas brancas, de trigo, variedades invernais e outras mais.

Para um curso intensivo, dirigi-me à De Groote Witte Arend (a grande águia branca, na língua flamenga). A cervejaria, em Antuérpia, está situada num edifício de tijolos construído em 1488 para abrigar um convento. Desde 1976, o local passou a ser uma cervejaria/restaurante com um menu de 280 cervejas e pratos substanciosos, como ensopado de carne, mexilhões em molho de curry e enguias cozidas em creme.

Provei cervejas com teor alcoólico de apenas 4,6% até as de assombrosos 9,2%.

No geral, deparei-me com uma enorme diferença entre as cervejas belgas e a maioria das produzidas pelos americanos, em sua esmagadora maioria lagers sem graça.

Garrafas da trapista Westmalle: cerveja dos monges se tornou tanto sucesso de mercado quanto de marketing.

Na De Witte Arend Groote, experimentei a Buffalo Bitter, uma cerveja tirada como chopp - ou seja, não é pasteurizada -, cujo nome é uma referência a Buffalo Bill. O circo de Buffalo Bill apresentou-se certa vez na cidade e distraiu um jovem cervejeiro o suficiente para fazê-lo esquecer de revolver a cerveja, do que resultou uma bebida muito amarga - bem amarga ela certamente é - e com 9% de álcool.

Provei algumas cervejas produzidas em mosteiros, entre elas a Trappist Rochefort (9,2%), maravilhosamente trigal e deliciosa com comida belga. A Hopus, produzida pela Brasserie Lefebvre (que faz 24 outras cervejas), revelou-se espumante e encorpada, agridoce, escura e viscosa. Mas a cerveja mais notável da noite - eleita "World's Best Ale", ou a "Melhor Cerveja do tipo Ale do Mundo", em 2008 - foi a Tripel Karmeliet, um mix de notas terrosas, muito ricas e às vezes adocicadas. Seu fabricante, a Bosteels, está no ramo há sete gerações, desde 1791.

Na serena e bela cidade de Ghent, visitei a Gruut Gentse Stadsbrouwerij, à margem do rio. Ela é aberta ao público, com um café em funcionamento em seu interior, e é de propriedade de uma jovem fabricante de cerveja chamada Annick De Splenter, que emprega exclusivamente especiarias em vez de lúpulo para produzir suas cinco cervejas não filtradas, não pasteurizadas e ligeiramente nubladas.

Você pode provar os levíssimos sabores de especiarias como coentro e casca de laranja em sua cerveja de trigo, ao passo que sua semiadocicada Old English Pale Ale tem uma maravilhosa cor caramelada, com abundantemente rica complexidade, uma cerveja com 6,6% de álcool para ser saboreada com atenção integral, e não bebericada num pub. Essa ale de cor amarronzada tem um aroma delicioso e picante, com tons cítricos e um fim com toques de amêndoas. A sua blonde (5,5%) é bem mais encorpada que as lager americanas e tem cevada bem presente.

Apenas como experimento, De Splenter produziu uma cerveja de lúpulo denominada Inferno, que demonstra como a adição de lúpulo incorpora o amargor característico da maioria das cervejas, mas falta a ela quaisquer dos outros sabores interessantes.

Bruxelas fervilha com bares e brasseries cervejeiras, entre elas uma denominada Delirium Café - na apropriadamente denominada Impasse de la Fidelitè - que lista mais de 2 mil cervejas de todo o mundo, cada uma descrita em texto, entre elas a Belgian Pink Killer, feita de grapefruit. Nenhum aficionado por cerveja em visita à Bélgica pode deixar de conhecer o museu de Geuze, na cidade, administrado pela família Van Roy-Cantillon desde 1900, onde os microorganismos vivos no ar provocam a fermentação espontânea do tradicional processo denominado "Geuze lambic". A cerveja é bombeado para barris de castanheira, onde tem início a fermentação, durante o qual o dióxido de carbono escapa através da madeira; assim, ela não fica saturado de gás.

A companhia afirma que a Greuze pode envelhecer e melhorar no decorrer de 20 anos. Esse leque de estilos de cervejas impressionou-me não apenas por sua quantidade, mas pelas muitas maneiras como podem ser apreciadas: para matar a sede, como acompanhamento de pratos - inclusive de queijos, que vão muito bem com cervejas levemente adocicadas - ou como bebida pós-jantar. Cervejarias artesanais no Reino Unido, Alemanha e EUA produzem, todas, cervejas muito boas e interessante, mas tendo em vista o número e diversidade das produzidas na Bélgica, passei a preferi-las.

Como disse-me um amigo belga: "Para os belgas, cerveja não é nem uma religião nem uma curtição. É apenas bom alimento".
(Valor Econômico 04/11/2011)