Nem tão jovem nem tão rebelde, a crescente legião de fãs brasileiros da moto mais famosa do mundo cai na estrada
Mil trezentos e oitenta e cinco motoqueiros invadindo sua cidade no feriado podem não soar como uma perspectiva animadora. O grupo que ocupou Búzios no dia 1º de maio, porém, nada tinha de rebelde, pelo contrário. Senhores respeitáveis, boa parte de cabeça branca e acompanhados das famílias, passaram quatro dias em um dos melhores hotéis da orla, assistindo a shows e palestras enquanto as mulheres faziam aulas de maquiagem e os filhos se divertiam no "espaço kids". De tempos em tempos, o ronco alto dos motores denunciava que não se tratava de um congresso de medicina ou engenharia. Eram proprietários de motocicletas Harley-Davidson - um artigo de luxo que nunca foi tão vendido no Brasil como hoje.
COM DESTINO
Mais de 300 motos vindas de
São Paulo cruzam a Ponte Rio-Niterói
rumo a Búzios, para o maior encontro
de Harleys no Brasil
Quinze anos atrás, quando a marca abriu sua primeira loja no país, apenas um punhado de brasileiros possuía a motocicleta mais cobiçada do planeta. Hoje, são mais de 5 mil, a maioria deles reunida num clube chamado HOG, sigla de Harley Owners Group, ou Grupo de Proprietários de Harley. "Vendemos cerca de 400 por mês, um número que dobrou nos últimos três anos", diz Valdir Cavallari Junior, gerente de marca do grupo Izzo, que representa a Harley no país. Espalhados por todo o mundo, os HOGs organizam periodicamente "ralis", nome que dão aos encontros de proprietários. Nas últimas semanas, por exemplo, além de Búzios, houve ralis em Tucson, nos Estados Unidos, e East London, na África do Sul. Só no Brasil, o orçamento anual do HOG para atividades assim ultrapassa os R$ 2 milhões. O rali de Búzios foi o maior já organizado aqui, com caravanas saindo de oito cidades de sete Estados e centenas de outros motoqueiros vindos de outras partes do país. A turma de São Paulo, com mais de 300 motos, chegava a formar uma fila de 3 quilômetros de extensão em alguns trechos da estrada e precisou de escolta da Polícia Rodoviária para não aumentar o caos do complicado trânsito dos paulistanos que demandam as praias no feriado.
Os ralis são uma parte indispensável da cultura Harley. Estar junto é a palavra de ordem dos "harleyros", como são chamados os amantes dessa moto. Cada parada para matar a sede ou descansar é uma festa à parte. Um harleyro quebrado pára todo o grupo. Apaixonados pela marca, eles se divertem simplesmente contemplando as máquinas uns dos outros. "O espírito do grupo é a união pela aventura. Tenho cada harleyro de qualquer lugar do mundo como alguém de minha família", diz o empresário Hamilton Mattos, de 64 anos, diretor do HOG no Rio de Janeiro.
Uma das razões do crescimento do número de Harleys no Brasil é a queda do preço, hoje entre R$ 30 mil e R$ 70 mil, conforme o modelo. A baixa se deveu à inauguração de uma linha de montagem em Manaus, em 1999, que tornou o preço apenas 15% maior que o pago por um consumidor americano. A fábrica - a primeira da marca fora dos Estados Unidos, segundo a empresa - criou até um modelo made in Brazil, o Sportster Concept, com um visual ao mesmo tempo retrô e futurista que lhe valeu elogios da matriz americana. Apesar do barateamento, o perfil dos proprietários ainda é bem diferente daquele do motociclista médio. "Aqui, a marca cresceu embalada por homens mais velhos e bem-sucedidos. A Harley é como um passaporte deles para uma vida mais livre", diz Cavallari Junior, do grupo Izzo. Comprar uma delas na concessionária, porém, é apenas o primeiro passo. Uma das graças de possuir uma Harley é "customizá-la", ou seja, personalizá-la com alguns dos 45 mil acessórios disponíveis, como roupas, bolsas, guidões, canos e detalhes de acabamento. Como os acessórios não são baratos - há botas de R$ 600 e casacos de R$ 1.500 -, o preço final às vezes é o dobro do da moto original.
"A Harley é o Lego do adulto", diz o cardiologista carioca Cláudio Acstin, de 48 anos. Ele comprou a motocicleta por R$ 48 mil e gastou mais R$ 30 mil em acessórios. Trocou o guidão original por um "seca-sovaco" (aquele que exige guiar a moto de braços abertos), importou canos novos dos Estados Unidos e mandou recortar as rodas com motivos que lembram chamas. Sua mulher, Cristina, de 44 anos, tem a própria Harley, que batizou de Black Rose - referência às rosas negras que tem tatuadas no corpo. Além da pintura customizada, dos guidões, espelhos e velocímetros diferentes, a moto de Cristina tem pequeníssimas rosas como tampas de válvula dos pneus. "Depois de mudar tudo o que é possível, o jeito é comprar outra moto", diz ela. Nos EUA, as mulheres chegam a 9% dos proprietários de Harley. No Brasil, não atingem 2%, mas elas avançam no mercado. A cirurgiã-dentista Valéria Aranha, de 45 anos, tem moto há 14 e comprou sua primeira Harley há dois. Sua maior façanha até agora foi ir, em março deste ano, do Rio de Janeiro, onde mora, a San Pedro de Atacama, no deserto do norte do Chile, para um encontro de harleyros. Foram 10.500 quilômetros de viagem. "Sensação de liberdade toda moto dá. Mas a Harley tem um encanto especial. Depois dela, não dá para mudar para outra marca", afirma.
EM FAMÍLIA
O advogado Walmir Devidé com a mulher,
o filho e a Harley, em Búzios. A tribo de
apaixonados pela marca inclui muitas
famílias que viajam juntas nos "ralis"
Há harleyros que trocam de moto com mais freqüência do que trocariam de carro. A história do empresário paulistano Jorge Brant, de 54 anos, resume o perfil dos proprietários de Harley no Brasil. Quando era adolescente, conta, ele sonhava ter uma motocicleta. A vida o empurrou para o trabalho, o casamento, as responsabilidades. Aos 44 anos, era dono de uma empresa da área de informática e tinha um sólido patrimônio. "Eu era um homem estressado, deprimido. Precisava fazer alguma coisa por mim", diz. Os amigos aconselharam sessões de análise. Jorge resolveu comprar uma Harley-Davidson. Em uma déca-da, já teve quatro motos e diz ter percorrido 300.000 quilômetros na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa. Hoje, é dono de uma Electra Glide, modelo que é sonho de consumo de grande parte dos harleyros. "Fiz amigos em todo o mundo, sou outra pessoa. É muito melhor que o divã", afirma.
O desejo de ter uma vida menos pacata também levou o carioca Ruppert Hahnstadt, de 52anos, à Harley-Davidson. Dono de uma indústria farmacêutica, ele comprou sua motocicleta há oito anos, dizendo-se disposto a viver "aventuras". Só monta nela nos fins de semana, quando ganha a estrada com Mara, sua mulher há 20, na garupa. Para o encontro de Búzios, levou também os sogros, um cunhado e algumas sobrinhas - que, como dezenas de parentes dos harleyros, seguiram as motos de carro ou em ônibus alugados. "A Harley é um sonho que se sonha aos 14 e se realiza aos 50", diz Hahnstadt, de jeans, casaco de couro e botas, o uniforme do grupo.
Usando bandanas coloridas na cabeça e pulseiras grossas, alguns harleyros aderem ao estereótipo do rebelde de motocicleta que Hollywood ajudou a criar (leia o quadro abaixo). Mas são poucos os que cultivam cabelos compridos e visual rebelde. A maioria são pais de família, como o advogado Walmir Devidé, de 42 anos, de São Caetano do Sul, São Paulo, que comprou a primeira Harley há dois meses e levou para Búzios a mulher, a pedagoga Simone, de 39 anos, e o filho Rodrigo, de 9. "A Harley faz jus à lenda. É diferente das outras motos, tem sexta marcha e é muito confortável", afirma. "Sem falar que é linda." Quando um harleyro fala da "bonitona" ou da "minha linda", nem sempre está se referindo à mulher.
OS "HARLEYROS" NACIONAIS
Idade:
de 35 a 55 anos
Profissão:
empresários e profissionais liberais, como médicos
e advogados
Renda:
R$ 20 mil mensais ou mais
Sonho de consumo:
Electra Glide, modelo de Harley largo, com o maior motor da marca e ultraconfortável para viagens. Entre outras comodidades, tem sistema de comunicação nos capacetes do piloto e do passageiro
A ORIGEM DE UMA LENDA
Hollywood e as estradas americanas construíram a reputação da Harley
A primeira motocicleta Harley-Davidson foi construída num fundo de quintal na cidade de Milwaukee, nos Estados Unidos, em agosto de 1901. Diz a lenda que seus criadores, William Harley e Arthur Davidson, instalaram um motor a gasolina numa bicicleta e usaram uma lata de molho de tomate no lugar do carburador. Os dois aperfeiçoaram o invento, encontraram os primeiros clientes e fundaram uma pequena fábrica em 1903. A marca foi angariando fama e ganhou um belo empurrão quando, na década de 50, Elvis Presley decorou o cenário de um show com uma Harley.
SEM DESTINO
Fonda e Hopper em Easy Rider,
filme decisivo na criação do mito
Harley-Davidson "
A fama mundial da moto - e o espírito aventureiro associado a ela até hoje - se deve ao filme Easy Rider (Sem Destino), de 1969. No filme, Dennis Hopper e Peter Fonda interpretam dois vagabundos que ganham dinheiro traficando cocaína e decidem trocar suas motos velhas por duas Harley-Davidsons modelo Chopper. Caem na Rota 66, a histórica estrada que atravessa o interior dos Estados Unidos, apenas com a roupa do corpo e embalados por uma trilha puramente rock'n'roll: Jimi Hendrix, The Birds, Steppenwolf (do clássico "Born to Be Wild"). Consta que três das quatro motocicletas usadas no filme desapareceram antes do término das filmagens. Estava criado o mito.
(Martha Mendonça/revista Época)
terça-feira, 27 de novembro de 2007
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